Georgete Duarte - Nas Salésias, ícone do Belenenses...

Georgete Duarte, as emocionantes memórias da mulher que mais ganhou em Portugal.
Treinos por oito tostões e outras incríveis revelações Domingo, dia 29, o Belenenses faz corrida para comemorar o seu 90.º aniversário. Simbólica, a partida é nas Salésias, onde em Janeiro de 1928 construiu o seu primeiro estádio. Tinha pista de atletismo e foi lá que Georgete Duarte se tornou um dos seus ícones, conquistando 46 títulos de campeã nacional em dez especialidades diferentes. Ainda hoje não há quem tenha mais.
A BOLA levou-a de regresso ao passado - numa viagem que é um encanto, surpreendente, emocionante... Olhou em redor, viu duas balizas toscas, mato a crescer, restos da parede a desfazerem-se, uma ou outra barraca ao fundo. Apeteceu-lhe chorar.
«Vá lá, na primeira vez em que voltei aqui, às Salésias, as lágrimas fugiram-me dos olhos. Custa muito ver esta miséria. Foi aqui que encontrei o meu destino e daqui que parti para ir pôr a primeira pedra ao Restelo.
Como é que o atletismo entrou na minha vida? O meu pai era maquinista dos Caminhos de Ferro - e para ter passe grátis fui jogar basquetebol para o Ateneu Ferroviário. Uma colega desafiou-me para as corridas, fui com ela para o Casa Pia. Também fazia voleibol e pingue-pongue. Pingue-pongue foi pelo Benfica porque senhor do Ferroviário, que tocava guitarra com a Dona Amália, viu-me jogar com os rapazes, era todo benfiquista, dirigente, achou que eu tinha jeito, levou-me para lá, para os campeonatos. Mas paixão era o atletismo, deixei tudo o resto...»
Junto à placa que assinala o primeiro campo relvado de futebol em Portugal, Georgete desfiou o rol de memórias.

Blocos? Buracos no chão!
Georgete desencosta-se da placa que diz que ali se fez o primeiro campo relvado de futebol em Portugal e rasga por entre erva e lama e lixo, descobre uma linha de cimento, exclama:
«Olhe, ali ainda um pedaço do rebordo da pista. Não, a minha primeira vitória não foi aqui, foi no Lumiar, no velho estádio do Sporting. O meu pai não sabia que eu corria, eu tinha assinado a ficha como se fosse ele, ninguém notou. Um fogueiro do comboio apareceu-lhe com um jornal a perguntar-lhe se a rapariga que lá estava não era a filha dele. Era, numa reportagem do Casa Pia. Soube da corrida, apareceu no Lumiar e ao aperceber-me dele nas bancadas fiquei em pânico, a gritar que não corria, não e não. Os senhores do Casa Pia foram pedir-lhe autorização, disse que sim. Ganhei e nunca mais me esqueci da imagem do meu pai, eufórico, a bater palmas.» Essa foi uma prova de 100 metros. Algures, por 1944.
«Blocos de partida não havia — fazíamos buracos no chão, escavávamos a pista, até os pés ficarem presos. Foi sempre assim, comigo. Bicos, só quando passei do Casa Pia para o Belenenses, mas eram uma coisa muito tosca, feitos por sapateiros que lhe encaixavam pregos nas solas. Às vezes, os bicos soltavam-se, espetavam-se nos pés, acabávamos as provas a coxear.
O que eu mais gostava de fazer era barreiras. Na primeira vez que apareci no Belenenses, Alberto Freitas, o nosso treinador, mandou-me passar uma barreira e... a única coisa que disse foi: «Meu Deus, que mulher nós temos...»

Campeã... grávida!
Nos 80 metros barreiras, de 1948 a 1958, onze títulos nacionais consecutivos ganhou. «O primeiro foi uma coisa espantosa: corri grávida de quatro meses, sem ninguém saber, e dei logo cabo do recorde nacional.»
E entre 1948 e 1955 ninguém lhe ganhou um campeonato no comprimento.
Atira os olhos tristes para um recanto do campo e em redor de pedaços de garrafas partidas, descobre vestígio da caixa de saltos.
«É verdade, para além das 11 vezes que fui campeã nas barreiras e das nove no comprimento, ganhei oito vezes os 100, cinco nos 200, quatro no pentatlo e poderia ter sido campeã de Portugal muitas mais. Os regulamentos não me deixavam fazer as provas que queria, nem estafetas, nem altura. Nas únicas três vezes em que pude ir ao salto em altura nos campeonatos, venci. Colchões, não havia! Fazia-se um monte de areia para amortecer a queda, saíamos, todas, de lá esfoladas. Não, não treinava muito, só antes dos campeonatos, oito vezes, duas por semana. Sabe porquê? Nem os oito tostões para o eléctrico me davam, tinha de vir por minha conta. Acácio Rosa, um dos nossos dirigentes históricos, oferecia-me alpercatas para correr e às vezes o dinheiro para os bilhetes que gastava nessas oito vezes...»

«Não sei se uma prostituta teria tantos nomes...»
O que Georgete passou por correr de calções e o dinheiro que deu para mobilar a casa Georgete Duarte tira da carteira fotos. Várias, a correr. Uma a cavalo, outra em... biquíni, na praia. Portugal, anos 50, coisa rara, ousada. «Eu era da Moita, sempre lá morei. Agora a Moita está grande, mas naquela altura era só campo, repolhos, batatas, os batelões que levavam a hortaliça para Lisboa, meia dúzia de casas.
O que eu passava por ser como era. Havia um rio onde as mulheres lavavam roupa e ao verem-me a caminho do comboio chamavam-me tudo. Às vezes chorava, de raiva.
Depois casei, ainda foi pior, mesmo com o meu marido comigo. A primeira vez que fui à televisão, em 1958, havia só um café na Moita, as mulheres a espreitar na vidraça, a dizerem: que vergonha, até na televisão ela aparece! Não sei se uma prostituta teria tantos nomes como eu tive, tanto falatório, só porque andava a correr de calções.
Eu era uma moça... boazonazinha, por isso os rapazes da Moita vinham a Lisboa às provas só para me verem as pernas. Às vezes penso que se me tivessem dado condições, tinha sido campeã da Europa, olímpica. Com as minhas qualidades, vontade... Era empregada na CUF, no departamento de projectos. Depois do trabalho e dos treinos ainda tinha a lida da casa.
No atletismo nunca ganhei nada. Fizeram-me uma homenagem nas Salésias em 1952 e uma festa de despedida no Restelo. Foram as únicas vezes que me deram dinheiro. Sabe para o que deu? Comprar a mobília para a minha casa...»

No BI de Georgete Duarte a idade: 84 anos
«Na cabeça e no corpo ainda não cheguei aí!» Percebe-se. Há 14 anos que dá aulas de ginástica a um grupo de mulheres no Pavilhão da Moita. «Muitas delas poderiam ser minhas filhas, netas. A única coisa de que se queixam é de eu puxar muito por elas. No ano passado fomos à caminhada da Meia Maratona da Moita: sete quilómetros. Umas vezes a correr, outras a marchar, eu sempre a dar-lhes gás, tiveram de ir atrás de mim. Está-me no sangue. É o que vou fazer, domingo, na Corrida dos 90 Anos do Belenenses, que é a minha vida. Só tenho pena que as Salésias, de onde vamos partir para o Restelo, onde me coube a honra de colocar a primeira pedra para o estádio, estejam neste abandono. Era tão bom que alguém nos ajudasse...»
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A reportagem, saiu na edição de hoje no Jornal "A Bola" e já foi publicada no "Noticias Belenenses", mas achámos por bem dar-lhe o merecido destaque, aqui no "Belém Livre".