Quarta, 29 Junho 2011 00:00
Há cerca de 10 anos, numa decisão política de grande alcance, o XIV Governo Constitucional (1ºministro António Guterres) criou condições para a posterior adjudicação pelo Governo seguinte (1ºministro Durão Barroso), da construção de dois navios de patrulha oceânica (NPO) por ajuste directo aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC). Essa adjudicação foi seguida, a breve prazo, da contratação de dois navios de combate à poluição (NCP), cuja configuração era baseada no projecto dos NPO.
Há cerca de 10 anos, numa decisão política de grande alcance, o XIV Governo Constitucional (1ºministro António Guterres) criou condições para a posterior adjudicação pelo Governo seguinte (1ºministro Durão Barroso), da construção de dois navios de patrulha oceânica (NPO) por ajuste directo aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC). Essa adjudicação foi seguida, a breve prazo, da contratação de dois navios de combate à poluição (NCP), cuja configuração era baseada no projecto dos NPO.
Posteriormente, para consagrar o comprometimento do Governo com o projecto de renovação dos meios navais de fiscalização da Armada, foi estabelecido um contrato-programa com os ENVC para construção de um total de 10 NPO e 2 NCP, englobando os contratos de construção dos NPO e NCP, já subscritos. Este contrato-programa ajustou-se às alterações de requisitos da Armada “trocando-se”, em montante financeiro, 2 NPO por 5 lanchas de fiscalização costeira (LFC) .
Entretanto, os ENVC foram beneficiários de contrapartidas do programa de aquisição dos submarinos. Entre essas, figurava o desenvolvimento do estudo do conceito e realização do projecto básico do navio polivalente logístico (NAVPOL/NPL). Esse trabalho foi realizado pelo Consórcio Alemão a quem foram adjudicados os submarinos da classe “Tridente”, em Kiel, no gabinete de projecto do estaleiro HDW, teve a participação activa duma delegação técnica da Armada e, igualmente, participação de técnicos dos ENVC. Esta contrapartida foi avaliada em 3 milhões de contos (15 milhões de euros).
Verifica-se assim que, entre 2001 e 2006, à margem de qualquer processo concorrencial, os ENVC ficaram com uma importante carteira de encomendas de navios militares destinados à Armada Portuguesa, com grande significado financeiro, possibilitando ao estaleiro, através do previsível sucesso na concretização desses programas, a obtenção de uma posição muito vantajosa como construtor de navios militares, atributo raro na generalidade dos países com baixo nível de industrialização, como é o caso de Portugal.
Esta carteira de encomendas militares, com preços contratuais extremamente confortáveis face aos preços correntes de “mercado” para navios destinados a missões afins, privilegiando de forma clara os ENVC, além de favorecer uma futura entrada no mercado de exportação de navios militares, garantia um volante de trabalho de produção industrial com algum significado, durante um período de tempo assinalável, permitindo que os ENVC prosseguissem o esforço de modernização que se impunha e que tinha sido identificado anteriormente.
Os NPO/NCP eram navios relativamente simples, com afinidades com a construção de navios comerciais e permitiriam aos ENVC “afinar” os procedimentos para a realização das LFC, cujos compromissos de dimensão e potência instalada face aos requisitos operacionais e técnicos da Armada exigiriam (como se tem vindo e se virá a comprovar nas negociações que têm decorrido) alguns cuidados especiais na concepção e construção. A concretização dos contratos de NPO, NCP e LFC seriam o “ensaio” necessário para os ENVC se abalançarem na construção do NPL, esse sim, um navio muito complexo Neste último navio, é inquestionável que, em virtude da sua especificidade, os ENVC necessitariam/necessitam de consultoria/apoio de entidades com experiência no respectivo projecto e construção, sob pena da concretização do correspondente contrato se arrastar, com os consequentes custos adicionais e demais prejuízos.
Como é do conhecimento generalizado de quem acompanha a evolução da indústria naval nacional, do lado do “Estado” que tutela o desenvolvimento económico e as empresas estatais, não se tem verificado na tutela dos ENVC suficiente diligência no processo de reestruturação, ao contrário do que se tornou patente no “outro Estado” que se preocupou em equipar a Armada com navios construídos na indústria nacional. A este propósito é pouco compreensível que não seja o Ministério de Economia a tutelar as Indústrias de Defesa pertencentes ao Estado.
Por mais de uma década, os avanços e recuos e a ausência de orientação estratégica do lado do Estado “accionista”, a ineficácia das administrações, algumas mais preocupadas em demonstrar que os engenheiros não percebem nada de gestão empresarial, e incapazes de identificarem as especificidades da indústria naval, permeáveis a múltiplos acordos laborais populistas, demagógicos e ruinosos, que acumulados ao longo dos anos levaram a acréscimos de encargos de produção economicamente insustentáveis (como é o caso do horário laboral de 37 horas semanais), contratos mal feitos e/ou mal geridos, ausência de adequados mecanismos de controlo e aprovisionamento de materiais e equipamentos insuficientemente acautelados, levaram a uma situação financeira insustentável, que o Governo cessante teve de enfrentar.
Depois de anos seguidos de insucessos empresariais, os anos de 2008 e 2009 acumularam todos esses insucessos e acrescentaram mais alguns de modo acelerado, evidenciando ser absolutamente necessário que se tomassem medidas tendentes a sanear a situação financeira e a reponderar a condição empresarial do estaleiro.
Entretanto foram sendo dispendidas somas avultadas em estudos de reestruturação que nunca levaram a qualquer decisão marcante da parte da tutela governamental.
Em meados de 2010 foi finalmente decidido dotar os ENVC de uma nova administração atribuindo-lhe o encargo de fazer o levantamento da situação e de criar condições para a revitalização do estaleiro, se acabasse por ser essa a decisão da tutela.
A iniciativa ficou fortemente comprometida à partida com a nomeação faseada dos administradores e com uma alteração estatutária de permeio, desenhada para satisfazer objectivos de promoção pessoal. O estatuto da empresa foi alterado tendo sido fixada uma solução de governação dualista, totalmente inapropriada e até absurda para uma configuração empresarial mono accionista que, em acréscimo, depende duma holding do Estado.
Os estudos de reestruturação foram feitos em cerca de 4 meses com o recurso a uma empresa consultora internacional e foram apresentados ao governo no princípio de 2011.
Como se tornou habitual, o Governo cessante tratou o assunto de forma distanciada e, até próximo do final (inopinado) do mandato, não tinha tornado públicas quaisquer decisões. Nos últimos dias, próximo da tomada de posse do XIX Governo, uma parte das soluções previstas no projecto de reestruturação, precisamente a que se relacionava com os recursos humanos, foi accionada isoladamente com o natural desagrado e a celeuma que é conhecida pela comunicação social e que seria de esperar. Desconhece-se se as outras parcelas do programa de reestruturação (saneamento financeiro, fundo de pensões, reestruturação orgânica e investimentos, relações de trabalho e acordos laborais, etc.) irão ser implementadas conforme propostas, ou não. Mas foram criadas condições para a “batata quente” ser endossada ao novo Governo.
Em conclusão, a história recente dos ENVC é um exemplo de desperdício de dinheiros públicos por incapacidade da liderança política e por ineficácia das administrações nomeadas pelo Estado.
Os ENVC, enquanto unidade industrial no Alto Minho que, por via da empregabilidade, tem um grande interesse local e regional, com uma história de mais de duas centenas de navios construídos e de umas largas centenas de navios reparados, numa área económica com grande potencial exportador, constituem uma mais valia industrial que justifica um apoio especial como resposta às dificuldades por que toda a indústria naval europeia passa e para resolver as necessidades de reajustamento organizacional, infra-estrutural e nos recursos humanos, que carece e que devem ser feitas, para garantir adequados factores de competitividade.
Mas todos os factores que justificam estrategicamente a existência e actividade dos ENCV e que ultrapassam a óptica exclusivamente financeira (que levaria ao encerramento imediato) não devem acomodar hábitos decorrentes duma arreigada cultura local que desrespeitem as regras da boa gestão empresarial e as boas práticas da indústria num contexto concorrencial, isto é, os elementos de ordem subjectiva que justificam uma atenção especial à indústria naval face ao contexto do mercado, não devem servir de blindagem e indiferença no esforço de procura de custos laborais competitivos, incremento na produtividade, procura de factores objectivos de competitividade, boas práticas de comercialização, racionalidade na produção etc.
Embora seja explicável, é inadmissível que os ENVC, com 4 contratos de navios militares, estabelecidos num período de 10 anos, apenas tenham conseguido executar a quase totalidade do primeiro (o dos NPO), e ainda assim com grandes atrasos e prejuízos assinaláveis. Os três outros contratos estão suspensos por diversas razões, nem todas da responsabilidade do estaleiro; agora, possivelmente, as limitações financeiras do Estado serão mais um obstáculo à retoma da execução desses contratos. É verdade que os ENVC não estão isolados na responsabilidade pelos incumprimentos, dificuldades e deficiências contratuais, mas é um facto que detém uma significativa quota-parte dessa responsabilidade. É inadmissível que não tivesse sido resolvida a incapacidade patenteada ao longo do tempo para se realizar uma correcta e atempada interpretação das consequências da aplicação da letra dos contratos assinados com o Estado e se diligenciasse a capacidade de gerir adequadamente os mesmos.
A actividade de construção naval não é um negócio de ocasião; a necessidade de gerir um contrato que pode decorrer em quatro ou mais anos, com centenas de interveniente e com milhares de actividades, exige precauções especiais, diferentes da gestão de encomendas que decorrem em três ou quatro semanas, como é o caso das reparações navais.
As dificuldades internas que levaram à difícil situação a que o estaleiro chegou estão longe de se cingirem aos contratos militares, antes pelo contrário. Neste momento as obrigações contratuais para com o armador venezuelano, para a construção de dois navios para o transporte de asfalto, não podem deixar de ser tomadas em consideração no esgrimir dos argumentos em matéria de racionalização de efectivos. È necessário ter em consideração que em Portugal não existe um mercado estruturado de subcontratação na área específica da indústria naval. É evidente que se pode sempre subcontratar empresas operando noutras regiões e até em países estrangeiros, mas os respectivos encargos são muito mais elevados do que o que terá sido o orçamentado, e terá fortes reflexos nos resultados finais da execução do contrato, a apurar dentro de quatro ou cinco anos. Mesmo a subcontratação corrente é, regra geral, mais dispendiosa em Viana do Castelo do que a homónima nos distritos de Lisboa e Setúbal. É evidente que alguns pensarão recorrer a mini firmas que recrutarão os que entretanto se desvincularam do estaleiro. Há que fazer contas para ver o resultado dessa operação.
A situação a que os ENVC chegaram, num contexto de crise económica e com o Estado a denotar sérias limitações financeiras, é extremamente perturbante, mas essa situação não resultou de qualquer catástrofe inopinada. Resultou de incúria, incapacidade, arrogância de solicitar apoio especializado no momento próprio, sobreposição de motivações individuais face aos interesses colectivos, etc.
Salvo nos casos de concorrência condicionada, como sucede nos ajustes directos, a indústria naval é um negócio internacional extremamente competitivo e não se compadece com ausência de competência na gestão. A condição económica e a capacidade tecnológica dos estaleiros são aspectos fundamentais na competitividade. Estaleiros fragilizados com más condições técnicas, económicas e financeiras não devem esperar contratos com armadores de primeira linha.
As responsabilidades políticas e gestionárias que na última dezena de anos levaram à actual situação técnica, económica e financeira nos ENVC, deviam ser identificadas para evitar que, mais uma vez, o erário público, suportado por todos os contribuintes, seja onerado com encargos desnecessários sem se identificar as consequentes responsabilidades e, de algum modo, evitar a futura ocorrência de situações semelhantes.
Numa altura em que na sociedade portuguesa se faz um esforço para revitalizar a economia do mar, a indústria naval é necessária e deve ser apoiada, mas esse apoio exige que todos os parceiros actuem com competência. O esforço financeiro do Estado, necessário para “refundar” os ENVC não deve ser desbaratado. Os portugueses merecem que as empresas do Estado sejam um activo e não um peso para a Sociedade!
(Victor Gonçalves de Brito - Contra Almirante, Engº. Naval)